Capítulo III | Love Behind Betrayal

em quinta-feira, fevereiro 16 |
Tentava despachar-me o mais depressa que conseguia, tencionando que me sobrasse ainda pelo menos uma meia hora para estar com a Wendy antes de ir trabalhar. Mexia-me atarefada, tentando concentrar-me somente no fogão, acabando de preparar os bolinhos de arroz. Enquanto isso, pelo canto do olho, ia observando a minha filha, completamente embrenhada nos seus trabalhos de casa, fazendo de vez em quando apenas uma pausa para ir à mochila buscar mais um lápis ou simplesmente se levantar para ir até ao lava-loiça buscar um copo de água. Olhei para o relógio depois de ter terminado de confeccionar o nosso almoço. Ainda me sobravam uns 20 minutos...
Fui buscar um copo de água quase 3 minutos depois de ela o ter feito – pelo menos pela 4ª vez só naqueles 30 minutos – e fiquei a observá-la, a escrever debruçada sobre o seu caderno da escola. A Wendy era extremamente boa aluna – uma das melhores da classe, por sinal – e era frequente os professores chamarem a atenção para o facto de ela se relacionar muito com os colegas da sala, ajudando-os nas actividades e tudo mais. Eu, claramente, era uma mãe babada com tudo isto e ficava incrivelmente feliz ao ver que a Wendy se esforçava tanto por manter as boas notas e fazer muitos amigos, além da grande ajuda que me dava ali em casa, apesar de ficar sozinha durante tanto tempo ao longo do dia.
Olhava-a com o mesmo sorriso radiante já há uns bons momentos, despertando quando a vi largar o lápis e fechar o caderno.
– Acabei! – Empunhou os braços no ar como se desse um viva tamanha era a alegria que esse simples facto poderia trazer-lhe e olhou-me com um sorriso doce, depois. Não disse nada, pelo menos até sentir o pêlo da nossa gatinha branca roçar-lhe nas pernas, pedindo atenção. – Oh, olá Charlés...
Pousei o copo de novo no lava-loiça, em silêncio. A voz da Wendy chegava para encher aquela cozinha, aliás, aquela casa de felicidade, mesmo estando ela sozinha numa das divisões. A leveza e doçura do sorriso dela eram absolutamente contagiantes.
– Estive ocupada a fazer os trabalhos de casa mas sabes que mais? Agora já tenho um tempo para brincar com Vossa Excelência, Madame! – Não consegui conter-me a esboçar um sorriso divertido ao ouvi-la falar assim. Ela olhou-me, em seguida, de volta ao seu tom normal e sereno, que me transmitia tanta calma. – O que foi, mamã?
– Nada. – Limitei-me a responder. Notei-a a encolher os ombros nas minhas costas antes de ligar o rádio na estação local. A Wendy adorava música, passava horas a cantar e a imaginar melodias. Às vezes, acho que ela até adormecia a murmurar algumas notas. Eu achava piada a essa tendência artística dela. Conhecia alguém que costumava tê-la há 7 anos atrás.
Foi uma questão de segundos até eu me virar e dar com ela a cantar como uma verdadeira artista, simulando-se em cima de um palco quando apenas se achava sentada na mesma cadeira, tendo como público apenas os seus cadernos, lápis e folhas, bem como uma gata persa branca que a encarava assustada de olhos arregalados. Além de mim, é claro.
Não consegui evitar uma gargalhada.
Kawashita hazu no nai yakusoku ga kyou mo bokura no mirai o ubaou to suru... – Vi-a olhar-me antes de se levantar para vir ter comigo, puxando-me pela mão para que a seguisse até ao meio da cozinha, antes de desatar aos saltos. Cantava sem parar, na sua voz fina e esguia. – Hoshigatteita mono o te ni shitemo... Sunao ni... Umaku waraenai no wa naze darou.
Afureru namida wa yowasa ya koukai janai itami ga unda kakera de...
Comecei a cantar com ela também sem dar por isso, as duas em uníssono, como num coro em pleno concerto de Rock.
Donna shunkan datte unmei datte hitotsu dake tashikana mono ga aru… To shitta... Hitori de kangaechatte ima o mayou yori ashita o... Mukae ni ikunda!
Dançávamos de mãos dadas como duas crianças, aos pulos no meio da cozinha. Ela saltava, gritava, cantava, tentava dar piruetas, tudo... Sem nunca me largar as mãos ou deixar de olhar para mim. Ao fim de alguns minutos, deixámo-nos cair exaustas no meio do chão. Fiz-lhe cócegas mal consegui recuperar do cansaço, fazendo-a rir à gargalhada, encolhendo-se para fugir do meu ataque antes de me abraçar novamente. Suspirei ao sentir a respiração quente dela perto do meu peito, mantendo-a abraçada a mim, protegida naquele lugar como eu costumava sentir-me com o pai dela, há 7 anos atrás.
– Adoro-te, mamã...
Só a abracei mais ao ouvir a vozinha dela, fazendo-a abraçar-me de forma mais apertada, tal como havíamos estado há um tempo, no meu quarto. Ela era... A única coisa que me restava. A única pessoa que eu ainda tinha. A única que eu sabia que sempre acreditaria em mim e compreenderia o que eu fazia. A única que nunca me viraria as costas, seguramente, houvesse o que houvesse. Que teria sempre uma palavra amiga para me reconfortar. Um abraço para me dar quando eu precisasse dele. A nossa filha.
Ficaria com ela ali durante o resto do dia, se pudesse fazê-lo. Ela sabia bem que eu não me importaria, que daria tudo para trocar aquele trabalho no supermercado por mais umas horas do meu dia com ela. Mas não era possível. O sustento e o bem-estar dela dependiam disso. Beijei-a na testa, adivinhando-lhe o sorriso. Ela riu-se depois, ao sentir o pêlo da Charlés roçar-se na sua pele de novo, quando a gata resolveu vir interromper o nosso momento, lançando-se para o meio de nós.
– Oh, Charlés, sua gata ciumenta e tonta! – Ralhou ela tentando parecer séria, mas sem conseguir fazê-lo no meio daquele enorme e encantador sorriso genuíno.
Acariciei-lhe os cabelos, apoiando-me na cadeira à minha frente depois para me poder levantar. Sem adiantar mais nada, ela limitou-se a fazer o mesmo, ficando a olhar-me com os seus olhos brilhantes e pequeninos – quase tanto como ela própria – como a um objecto de adoração. Sorri-lhe depois.
– O que foi, Wen...?
Não tive sequer tempo de terminar a pergunta. Os braços dela rodearam-me a cintura, voltando a abraçar-me com força, enquanto o seu rosto se escondia na minha barriga, devido à sua estatura baixinha. O meu sorriso aumentou um pouco, mas de uma forma mais triste. Acariciei os seus cabelos azuis escuros.
– Wendy vá lá... A mãe tem mesmo de ir. – Ajoelhei-me na frente dela, beijando-a na testa e na bochecha depois, olhando-a. – Ficas bem? Aguentas até a mãe chegar?
– Sim. – Respondeu ela, olhando um pouco para o chão. Depois, como se lembrasse de qualquer coisa extremamente importante de repente, olhou-me de novo com uma expressão chocada e, simultaneamente, feliz. – Mamã?
Olhei-a, estranhando.
– O que foi?
– É... É hoje, não é?
Fixei-a durante um tempo, tentando perceber onde quereria ela chegar com aquela pergunta. Hoje? O que raio é que...?
O meu coração disparou de repente quando me lembrei daquela data. 13 de Outubro...
Jellal...
– É hoje. Eu... Queria ir lá. – Disse ela, olhando-me muito mesmo em tom de súplica. – Mamã? Eu queria ir buscá-lo. Tu... Tu prometeste que quando o papá saísse da prisão iríamos ter com ele. Que estaríamos à espera dele. Nós vamos, não vamos? Eu... Eu sonhei com isso toda a semana, só que... Hoje de manhã esqueci-me. Por favor, mamã!
Engoli em seco, olhando o chão completamente em choque. Faziam exatamente 7 anos que ele tinha sido condenado. 7 anos que eu tinha cometido, de entre todos eles, o maior erro da minha vida. 7 anos que eu tinha descoberto que estava grávida. 7 anos que eu fora, para proteger o futuro da Wendy, forçada a viver aquela farsa, fingindo odiá-lo e deixando-o sozinho contra o mundo. 7 anos que eu tinha parado de ser feliz por completo.
7 anos...
... Que, se não existisse a Wendy, eu estaria morta.
– Eu... – Olhei-a nos olhos, reparando nos pontinhos brilhantes que ameaçavam correr-lhe pelo rosto. O meu coração batia a mil mas o dela parecia tão agoniado que deveria ter parado no tempo. Suspirei, forçando um meio sorriso em seguida, deixando que a minha mão lhe acariciasse as bochechas quentes, impedindo as lágrimas de caírem por elas ao fazer-lhe carinhos. – Ok. A mãe... A mãe vai pedir para sair mais cedo do trabalho e passamos as duas por lá. Que achas?
Ver o sorriso de felicidade com que ela me brindou em seguida antes de me abraçar novamente quase escasseou qualquer medo que eu pudesse sentir. Sentir o conforto que ela me dava, os seus mimos, a forma como tentava dar-me forças para continuar a viver, mesmo que inconscientemente... Tudo o que ela fazia por mim só naqueles poucos minutos, dava-me a oportunidade de notar o me receio um pouco menor. Ela transmitia-me calma. Esperança. Paz. As únicas coisas que só ele, um dia, me havia conseguido fazer sentir.
A minha filha estava crescida. Há já muito tempo que esquecera os recados habituais do género “não abras a porta a estranhos”, “não mexas no fogão”, ou “não saias de casa sozinha”. A Wendy já era esperta o suficiente para saber que todas essas coisas não deveriam ser feitas. Já era uma mulherzinha, compreendia com facilidade as boas e más acções. Mas existiam assuntos que até mesmo ela, com toda a sua inteligência e perspicácia, nunca poderia saber entender apenas com 6 anos e meio. Assuntos que poderiam chegar para magoá-la, para que ela se sentisse plenamente sozinha no mundo apesar de me ter a mim e ao pai, embora estivéssemos separados. Assuntos que eu, ao longo de todo aquele tempo, lutara para ela não soubesse, nem suspeitasse sequer.
Suspirei antes de beijá-la na testa, encaminhando-me em seguida para a saída. Ouvia o miar da Charlés à medida que me afastava, denotando também a voz da Wendy enquanto pegava nela ao colo. Ainda consegui vê-la acenar-me antes de fechar a porta de casa.

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- Catulo IV

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