Capítulo II | Love Behind Betrayal

em quinta-feira, fevereiro 16 |
Acordei meio desnorteado com a azáfama do costume, ali. Todos os rapazes já se tinham levantado e estavam agora a arrumar os dormitórios, tendo sempre de deixar tudo limpinho até se poder ver reflexos no chão de mármore. Isto se queriam evitar castigos. Limpei a minha parte, arrumando o meu saco cama já roto nos fundos por eu já ser demasiado grande para ele e olhei em volta depois. Se alguém soubesse que eu tinha aquilo ali, nunca chegaria a entregar aquilo à respectiva dona. Sorri, pegando no pequeno embrulho, escondendo-o entre as minhas calças e a camisola. Óptimo, assim ninguém conseguia ver. Se tudo corresse bem, conseguiria dar-lhe o presente ainda antes do cair da noite.
– O que é que pensam que estão a fazer? Larga isso! Já! – Virei-me de imediato na direcção da porta, ao ouvir a voz forte do Brain ecoar, desde a sala até ali. De seguida, ouvi os gritos da Erza. Não… Não, por favor, naquele dia não!
Disparei escadas a baixo, até chegar à sala onde normalmente nos apresentavam às famílias. Ainda estava em processo de limpeza. Vi um presente, meio aberto, mais perto do sítio onde estava. Uns passos depois estava Brain, grande e opulento, agarrando a Erza pelos cabelos enquanto Simon a tentava soltar, praticamente pendurado no braço enorme de Brain.
– A culpa não é dela, fui eu que lhe ofereci. Por favor…
As súplicas dele foram sacudidas com um safanão, enquanto a outra mão procurava a bengala com que ele andava normalmente, não para se manter em pé mas para nos castigar. Não tive tempo de ver o corpo do Simon bater contra a parede. Apenas corri o mais que conseguia, atirando-me contra aquele enorme ser, fazendo-o largar a Erza com o impacto e desferir o golpe sobre mim. A cabeça de imediato me zuniu, enquanto sentia a zona da fronte do lado direito rebentar de dor. Algo quente me escorria por cima desse olho, contrastando com o frio que se espalhara pelo meu corpo. Perdi o equilíbrio.
– Jellal! Não… Jellal?!? – Tinha meramente uma vaga sensação da voz dela, que me havia amparado antes que a minha cabeça pudesse cair com estrondo no chão. Senti os passos de Brain aproximarem-se.
– Larga-o! Foi ele que se meteu à frente, logo é ele que vai apanhar pelos três. Ouviste? Larga-o!
Apesar das ameaças dele, foi sobre o corpo da Erza que eu senti a bengala cair. Todo o corpo dela tremia, tentando escudar o meu, enquanto eu, meio inconscientemente, tentava puxar também o dela para debaixo do meu. Ela não merecia aquilo. Nunca o havia merecido, e muito menos naquele dia… Eram os anos dela, ela fazia doze anos…

***
Sentia a mão dela na minha, enquanto a puxava pelos corredores frios e escuros do orfanato. Tentávamos não fazer qualquer barulho pois se fossemos apanhados ali… Muito provavelmente seria o fim para ambos. Segurei-a pela cintura quando chegamos a uma esquina, espreitando para o corredor o melhor que conseguia com um pequeno pedaço de espelho que tínhamos escondido. Não havia nenhuma luz… Sinal de que o caminho estava livre.
Algures, o relógio de pêndulo bateu a meia-noite. Senti a mão da Erza apertar mais a minha. Agora, eu tinha dezasseis anos. Tinha idade suficiente para sair do orfanato. E ia fazê-lo, levando-a comigo. Ela não aguentaria mais um ano, o tempo que faltava para ela também poder abandonar aquele local. Por isso, fugiríamos naquela noite.
Assim que conseguimos chegar ao último andar, abrindo a porta para o poeirento sótão, dei-lhe ambas as mãos puxando-a contra o meu peito. Mesmo no escuro e sem a poder ver era... Tão bom senti-la assim de novo nos meus braços. Senti a cabeça dela aninhar-se contra o meu peito, enquanto o pequeno pedaço de espelho na minha mão me devolvia o nosso reflexo. Os cabelos vermelhos dela eram a única coisa que se destacava contra o meu peito. Por cima do ombro dela, adivinhava-se um rosto que ainda não conseguia identificar como meu, devido à grande cicatriz com que tinha ficado. Por muito que eu tentasse esquecer aqueles anos que ali passara, aquela marca iria sempre lembrar-me deles. Por outro lado, lembrar-me-ia sempre de tudo o que tinha feito por ela.
Pois ela valia cada sacrifício.
Rocei devagarinho o meu rosto pelo dela, sentindo a pele suave dela contra a minha, tão áspera que nem parecia humana.
– Anda… Vamos embora daqui. – Abri o alçapão que dava para o telhado. A luz da lua-cheia iluminava por completo o recinto, fazendo reluzir o metal das escadas de serviço, por onde tinha planeado a nossa fuga. Ajudei-a a descer, indo de imediato atrás dela para garantir que chegaria a tempo, caso alguém nos apanhasse.
Tal não aconteceu. Só passados muitos quarteirões, que fizemos a correr o mais depressa possível, é que parámos de frente um para o outro. O enorme sorriso depressa deu lugar a gargalhadas de júbilo. As gargalhadas rapidamente passaram a lágrimas, por sabermos que nunca mais passaríamos por algo semelhante. Passei-lhe depois as mãos pelo rosto para lhe limpar as lágrimas, eu próprio ainda a lutar contra as minhas.
– Erza…?
– Diz…?
– Posso… Tentar uma coisa?
– A-acho que sim…
Respirei fundo tentando arranjar coragem. Levantei lhe o rosto muito devagarinho olhando a bem fundo nos olhos, baixando o olhar depois para a boca dela. Era bastante óbvio o que eu ia fazer... Mas pelo menos assim ela tinha tempo pra me rejeitar. Durante todos aqueles anos, toda a minha protecção tinha sempre uma base de sentimento por trás. Companheirismo passou a amizade. Amizade passou a carinho. Carinho passou a amor. Não tinha bem a certeza do momento em que tinha parado de a ver como uma criança e a tinha começado a ver como uma mulher. Uma mulher linda, pela qual eu daria a vida as vezes que fossem necessárias. Só havia um único problema…
Como é que se beijava?
Eu nunca o havia feito. Pelo que sabia, ela também não. Os primeiros toques foram de um simples roçar. Nenhum de nós sabia muito bem como começar. Mas nunca esqueci aquele primeiro beijo.

***
– Não o achas demasiado pequeno?
– Jellal somos só nós os dois. E não temos dinheiro para mais. – Senti a mão dela procurar a minha, entrelaçando os dedos. – Para começar, está óptimo assim. Se algum dia tivermos dinheiro para uma maior e a família começar a crescer, depois vemos de uma maior.
O sorriso espalhou-se pelo meu rosto, olhando o pequeno apartamento que tínhamos conseguido arranjar. Um simples T0, mas que para nós era mais um Ttudo. Era a nossa primeira casa. As primeiras semanas depois da fuga haviam sido tempestuosas. Quer de tempo, quer de ambiente entre nós. Havíamos sobrevivido por três semanas numa carrinha abandonada, comendo o que conseguíamos encontrar ou mesmo “pedir emprestado” de algumas superfícies comerciais. Havíamos discutido imenso, quanto à nossa futura fonte de rendimento. Ela estava disposta às maiores loucuras, para conseguir dinheiro para nos sustentar. Eu recusava-me a tal. Não era de todo machismo, como ela me acusara já algumas vezes. Eu não tinha problema nenhum que ela trabalhasse, que também contribuísse para a casa. Somente não queria partilhar o que já tinha feito meu com outros.
Eu arranjara uma solução. Arriscada e vendida em pequenos pacotes, mas estava a dar para o gasto. 
Após a primeira semana, fui considerado apto a vender para tubarões, e não apenas para peixes pequenos ou médios. Advogados, médicos, até juízes e polícias. Muitos nomes circulavam pelas minhas mãos antes de eu fazer os pacotes circularem pelas deles. Dos nomes mais soantes e mais necessitados, era Erik quem sempre me procurava, em vez de ser o contrário. Tendo Cobra como cognome, naquela altura em que estava ainda a começar mas já era famoso pela defesa de vários casos sórdidos, ninguém o conseguia associar a nada daquilo.
– Se não fosse por já estares embrulhado com quem estás, eu sugeria-te uma parceria, sabes? – Dizia-me ele, muitas vezes.
Um dia, pura e simplesmente deixou de aparecer. A polícia veio no lugar dele.

***
– Acorda, vá Fernandes. Já é de dia.
Abri os olhos, escudando-os depois, perante a luz intensa que entrava pelas grades. Respirei fundo depois ao olhar para o tecto. Já era de dia… Era o meu dia.
Ainda deitado no chão, procurei quem me acordara, encontrando a sua figura a olhar para mim pendurado nas grades. Tinha o cabelo cenoura mais espetado que o normal. Dirigia-me um sorriso amigável.
– Anda lá. Olha que eles ainda mudam de ideias, se te demoras muito. Gostaste assim tanto das instalações?
– Nem morto cá passo mais tempo. – Disse, sentindo a voz rouca por não falar há tanto tempo. Praticamente só falava sempre que o Agente Loke vinha ver de mim. Aprendera que falar de mais ali podia dar mau resultado. Por isso nunca pedira nada. Nem colchão para dormir, nem cobertores, nem almofada… Nada. Sabia bem o que teria de dar em troca.
– Então mexe-te. – Loke abriu-me a cela, esperando que eu vestisse as roupas que tinham ficado retidas como objectos pessoais. No fim, algemou-me para me poder levar pelos corredores.
Assim que chegámos à entrada da prisão, ele tirou-me as algemas, entregando-me um pequeno papel em mãos.
– Tenho a certeza de que ainda te lembras bem da morada… Mas é só mesmo para certificar. – Olhei para ele ao verificar a morada. Era… Ele apenas me piscou o olho. – Tem cuidado contigo. Aproveita o ar. Cheira a tua liberdade.

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- Capítulo I

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